ANÁLISE DA MÚSICA
“O BÊBADO E A
EQUILIBRISTA “
As canções
solicitadas no ENEM têm como referencial abordagens temáticas que envolvam
questões sociais, políticas, culturais, econômicas e filosóficas além de
elementos identitários do nosso país, privilegiando sempre em todas elas a sua
narrativa e não a sua característica melódica ou rítmica.
Por isso, iremos hoje fazer uma análise
da canção “o bêbado e a equilibrista” devido a sua relevância histórica, pois a
mesma se tornou um hino da Anistia em 1979 entoada por milhares de brasileiros,
durante a Ditadura Militar (1964-1985). O movimento pela Anistia articulou-se
na defesa da população brasileira que ansiava pelo retorno dos exilados ao
nosso país e liberdade aos presos políticos aqui existentes.
A canção em sua
narrativa faz uso de recursos poéticos que evidenciam fragmentos históricos da
época, além da consciência política dos autores.
Sendo esse período
marcado por intensa censura às produções culturais, a música foi um dos
instrumentos de denúncia contra o autoritarismo institucionalizado como regime
de exceção no que se refere às liberdades democráticas e à liberdade artística
de criação, não só nas artes, mas também na imprensa e nos diversos meios de
comunicação.
No entanto, conforme
seus autores, a canção foi composta para homenagear Charles Chaplin que havia
falecido no natal de 1977. (BOSCO, 2009).
A melodia é de autoria de João Bosco, a letra
de Aldir Blanc e foi interpretada por Elis Regina. Blanc concedeu uma
entrevista em 2007 à Associação Brasileira de Imprensa e relatou que
Quando o
Chaplin morreu, o João me chamou na casa dele e disse que havia feito um samba,
cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com “Smile”, propositalmente
construídas para que homenageássemos o cineasta. Só que, casualmente, encontrei
o Henfil e o Chico Mário, que só falavam do mano (Betinho) que estava no exílio.
O papo com o Chico e o Henfil me deu um estalo. Cheguei em casa, liguei para o
João e sugeri que criássemos um personagem chapliniano, que, no fundo,
deplorasse a condição dos exilados. Não era a ideia original, mas ele não criou
caso e disse: “Manda bala, o problema é seu” (BLANC, 2007).
A análise da
narrativa da canção através de seus versos nos propicia perceber as diversas
construções simbólicas da composição e da realidade vivida à época.
TÍTULO DA CANÇÃO – É marcado por uma elevada linguagem simbólica através da analogia. O
Bêbado se refere aos artistas, músicos e poetas que se sentiam excluídos diante
da censura imposta e que os mesmos levantaram suas vozes contra o regime
militar, motivados pela “embriaguez” da liberdade. Já a Equilibrista é uma imagem metaforizada
da esperança, da volta da democracia em nosso país que precisa ser concretizada
diante de uma realidade opressora (à época) - daí a necessidade da permanência
e da existência da esperança simbolizada na equilibrista que não cai, diante
das restrições estabelecidas: A ditadura militar.
Observa-se então, um
paralelismo entre o bêbado e a equilibrista pois ambos precisam se manter em pé
ante à realidade e às condições existentes no período citado.
ESTUDO PORMENORIZADO
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...
O viaduto em questão,
expresso na canção, faz referência ao conjunto de construções realizadas
durante o “milagre econômico e nos alude a uma tragédia que ocorreu no dia 20
de novembro de 1971. Foi o desabamento do viaduto Paulo Fotrin no Rio de
Janeiro, onde uma parte de uma imenso elevado que se estendia por quilômetros,
caiu sobre os pedestres fatalizando 27 pessoas, deixando dezenas de feridos e
atingindo mais de vinte veículos. Este ocorrido não foi noticiado pela imprensa
pois a mesma estava sob o regime da censura (O GLOBO, 2016).
“Caía a tarde”
é também uma alusão ao horário em que as sessões de tortura se iniciavam no
DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de operações de
Defesa Interna)
“O bêbado trajando luto” faz alusão à queda do viaduto e nos remete à
tragicomédia do andarilho Carlitos, personagem de Charles Chaplin, o
homenageado da canção.
Carlitos usava um
bigode, um paletó bem apertado, chapéu – coco que agia como um cavalheiro,
apesar de suas péssimas condições. No filme, Tempos Modernos (Chaplin, 1936),
ele é um operário que se submete a uma rígida disciplina ordenada pelo processo
fabril e por não se adaptar aos padrões impostos pelo modelo industrial é preso
numa das manifestações de greve dos trabalhadores. Lembrar Carlitos é pois uma
clara referência às greves proibidas durante o período militar em que os
manifestantes eram presos também.
A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
A lua é
um satélite que não possui luz e nem brilho próprio pois reflete apenas a luz
do sol e “tal qual a dona do bordel ”
que tem um brilho falso, diante do seu
prostíbulo. Assim sendo, “a lua” é
uma construção poética para se referir aos políticos que apoiaram o regime
militar (tal qual as prostitutas que recebem dinheiro) com o objetivo de
obtenção de benefícios pessoais.
Os políticos
defensores do regime de exceção eram chamados de luas-pretas devido ao fato de
que em conversas reservadas, algumas pessoas afirmavam que se os militares
afirmassem que a lua era preta, eles não só acreditariam como defenderiam tal
afirmação como sendo uma verdade incontestável. Também é possível aludir os
políticos às prostitutas, conforme assinalei no parágrafo anterior, já que elas
se vendem em troca de ganhos pessoais. Muitas vezes, a Câmara dos Deputados e o
Senado foram comparados a bordeis devido as constantes negociatas imorais que
lá ocorriam.
As estrelas frias
seriam os generais que governavam o Brasil como também possuíam vantagens
astronômicas: nomear parentes e correligionários em cargos públicos e ou na
direção das estatais. O “brilho de aluguel”
era, portanto, as vantagens obtidas tanto pelos militares como pelos civis que
o apoiavam.
E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
“As nuvens” é uma metáfora aos
torturadores que assim como ela, eram inalcançáveis e intocáveis, diante das
suas ações
“Mata – borrão” era um equipamento de
escritório usado por aqueles que utilizavam caneta- tinteiro para eliminar os
borrões (os erros) na escrita. É uma alusão ao DOI-CODI (já explicado no início
dessa análise), órgão de repressão e controle do regime militar contra aqueles
que ameaçassem (“manchassem”) a ordem vigente. O “céu” do mata-borrão eram as prisões. As “manchas torturadas” seriam os opositores (os rebeldes contra o sistema)
ao regime configurados como um “erro”
de escrita, algo fora de ordem, indisciplinado e “torturadas” seriam uma referência às torturas sofridas pelos
militantes de esquerda que viviam em constante “sufoco”, perseguido pelos militares.
Louco,
O bêbado com
seu chapéu coco
Fazia irreverência mil
Pra noite do Brasil
Nesses versos, percebe-se a comparação
entre Carlitos (que vivia diante da opressão da sociedade e do modelo
industrial opressor) e o bêbado (que com seu chapéu coco fazia irreverência pra
noite). Aqui, metaforicamente, noite simboliza os anos ditatoriais em oposição (antítese)
ao amanhecer, identificado como o retorno das liberdades democráticas.
Meu Brasil! ...
Que sonha com a volta do irmão do Henfil.
Com tanta gente
que partiu
Num rabo de foguete.
Chora!
A nossa pátria,
Mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil.
Henfil é o apelido de
Henrique Filho, um jornalista e cartunista que era irmão de Betinho, Herbert de
Souza, sociólogo exilado do país devido ao seu intenso ativismo em defesa dos
direitos humanos. É primordial salientar que a referência ao exílio de Betinho
é também a todos os perseguidos e exilados do país bem como a esperança da
anistia.
“Com tanta gente que partiu num rabo de foguete” é uma metáfora para destacar os exilados políticos
que foram forçados a deixarem o país, ou que tiveram que sair.
“Chora a nossa pátria mãe gentil” (...) “no solo do
Brasil” é uma ironia ao refrão do
Hino Nacional do Brasil, pois segundo a canção, o Estado que tortura e persegue
é aquele que justamente deveria promover a justiça, a segurança e a proteção
dos brasileiros.
Maria é o nome da
esposa do operário Manuel Fiel Filho, acusado de ser membro do Partido
Comunista Brasileiro e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog. Ambos
foram mortos nos porões do DOI-CODI(SP). O operário em Janeiro de 1976 e o jornalista
em outubro de 1975, em situações semelhantes (VENTURA,1988).
O nome das duas
esposas aparecem no plural porque nos remete a todas as esposas, mães e filhas,
ou seja, às mulheres brasileiras que de alguma forma sofreram ou perderam um
ente querido para o regime militar.
“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente”
A dor de todas as
mulheres cujos familiares estavam imbuídos do ideal de luta pela democracia e
que foram vitimados de alguma forma não será esquecida, pois conforme relatou a
intérprete da canção, Elis Regina em entrevista concedida a Rádio Nacional do
Rio de Janeiro em 1979, no lançamento do seu disco, essa mulher
“a grande parcela da população anseia encontrar um Carlito deste e sonha não ver mais nem Marias e nem
Clarices chorando ” (REGINA,1979)
A esperança...
Dança
na corda bamba
De
sombrinha
E cada passo
Dessa
linha
Pode
se machucar
Azar
A
esperança equilibrista
Sabe
que o show
De
todo artista
Tem
que continuar (BOSCO, BLANC,1979)
Nesses últimos versos
da canção temos a personificação da esperança através da figura da equilibrista
que, diante das incertezas, ressalta a arduidade que esta enfrenta para prosseguir em frente, apesar das
adversidades impostas pelo regime.
Para
não encerrar...
Após a aprovação da
Lei da anistia, a cantora Simone gravou uma canção composta por Maurício
Tapajós e Paulo César que aborta o tema. Veja a letra abaixo.
Tô Voltando - Simone
Pode ir
armando o coreto
E
preparando aquele feijão preto
Eu tô
voltando
Põe meia
dúzia de Brahma pra gelar
Muda a
roupa de cama
Eu tô
voltando
Leva o
chinelo pra sala de jantar
Que é lá
mesmo que a mala eu vou largar
Quero te
abraçar, pode se perfumar
Porque eu
tô voltando
Dá uma
geral, faz um bom defumador
Enche a
casa de flor
Que eu tô
voltando
Pega uma
praia, aproveita, tá calor
Vai
pegando uma cor
Que eu tô
voltando
Faz um
cabelo bonito pra eu notar
Que eu só
quero mesmo é despentear
Quero te
agarrar
Pode se
preparar porque eu tô voltando
Põe pra
tocar na vitrola aquele som
Estreia
uma camisola
Eu tô
voltando
Dá folga
pra empregada
Manda a
criançada pra casa da avó
Que eu tô
voltando
Diz que
eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone
não deixa nem tocar
Quero lá,
lá, lá, ia, porque eu tô voltando!
Manoel Mosilânio Malaquias da Cruz (Pixote
Cruz)
Historiador
(URCA), Pedagogo (URCA), Graduado em Mídias da Educação (MEC) Especialista em
Mídias da Educação(UFC), em Educação e Direitos Humanos (UFC); em Análise
Transacional (Academia do Futuro) e em Metodologia do ensino Superior (UNICAP).
Pesquisador sobre Música Brasileira e Tutor do Projeto Professor Aprendiz da
SEDUC- FUNCAP na área de Ciências Humanas. Professor de Graduação e Pós-
Graduação da Faculdade FACEN. Professor da Rede Privada e Pública Estadual de
Brejo Santo-Ce, e do Curso Sapiento. (Salgueiro – Pe)
Especialista e Consultor
Educacionais das Matrizes Curriculares e dos Parâmetros Curriculares Nacionais
e da prova do ENEM
Acesse o canal ENEM TOMARA 2017.
FONTES CONSULTADAS
ACERVO O GLOBO.
Em novembro de 1971, elevado Paulo de Frontin desabou, matando 27 pessoas.
2016. Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/em-novembro-de-1971-elevado-paulo-de-frontin-desabou-matando-27-pessoas-10808571#ixzz40FPQKF8X.
BLANC, Aldir. Associação Brasileira de Imprensa.
Entrevista concedida à José
Reinaldo Marques. 2007.
Disponível em: http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/.
BOSCO, João. Clima
de emoção na homenagem a Henfil. Entrevista concedida a Associação
Brasileira de Imprensa. 2009. Disponível em:
http://www.abi.org.br/clima-de-emocao-na-homenagem-a-henfil/.
REGINA, Elis.
Lançamento do disco Essas Mulheres. Entrevista concedida a Rádio Nacional do
Rio de Janeiro. 1979. Disponível em: http://www.ebc.com.br/sites/default/files/null/4_-_o_bebado_e_a_equilibrista.mp3.
REIS, Daniel
Arão; ROLLEMBERG, Denise. A ditadura, as
artes e a cultura. Portal Memórias Reveladas. Governo Federal.
Disponível em:
http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/campanha/censura-nas-manifestacoes-artisticas/
.
SILVA, Fernando Lopes. O poético e o factual na
letra da canção “o bêbado e a equilibrista”. Disponível em : http://alpha.unipam.edu.br/documents/18125/1302275/O+po%C3%A9tico+e+o+factual+na+narrativa+da+can%C3%A7%C3%A3o.pdf
VENTURA,
Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988.