quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Leia agora a COLUNA DO PROFESSOR PIXOTE


ANÁLISE DA MÚSICA
 “O BÊBADO E A EQUILIBRISTA “


      As canções solicitadas no ENEM têm como referencial abordagens temáticas que envolvam questões sociais, políticas, culturais, econômicas e filosóficas além de elementos identitários do nosso país, privilegiando sempre em todas elas a sua narrativa e não a sua característica melódica ou rítmica.
     Por isso, iremos hoje fazer uma análise da canção “o bêbado e a equilibrista” devido a sua relevância histórica, pois a mesma se tornou um hino da Anistia em 1979 entoada por milhares de brasileiros, durante a Ditadura Militar (1964-1985). O movimento pela Anistia articulou-se na defesa da população brasileira que ansiava pelo retorno dos exilados ao nosso país e liberdade aos presos políticos aqui existentes.

A canção em sua narrativa faz uso de recursos poéticos que evidenciam fragmentos históricos da época, além da consciência política dos autores.
Sendo esse período marcado por intensa censura às produções culturais, a música foi um dos instrumentos de denúncia contra o autoritarismo institucionalizado como regime de exceção no que se refere às liberdades democráticas e à liberdade artística de criação, não só nas artes, mas também na imprensa e nos diversos meios de comunicação.
No entanto, conforme seus autores, a canção foi composta para homenagear Charles Chaplin que havia falecido no natal de 1977. (BOSCO, 2009).
 A melodia é de autoria de João Bosco, a letra de Aldir Blanc e foi interpretada por Elis Regina. Blanc concedeu uma entrevista em 2007 à Associação Brasileira de Imprensa e relatou que
Quando o Chaplin morreu, o João me chamou na casa dele e disse que havia feito um samba, cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com “Smile”, propositalmente construídas para que homenageássemos o cineasta. Só que, casualmente, encontrei o Henfil e o Chico Mário, que só falavam do mano (Betinho) que estava no exílio. O papo com o Chico e o Henfil me deu um estalo. Cheguei em casa, liguei para o João e sugeri que criássemos um personagem chapliniano, que, no fundo, deplorasse a condição dos exilados. Não era a ideia original, mas ele não criou caso e disse: “Manda bala, o problema é seu” (BLANC, 2007).

A análise da narrativa da canção através de seus versos nos propicia perceber as diversas construções simbólicas da composição e da realidade vivida à época.
TÍTULO DA CANÇÃO – É marcado por uma elevada linguagem simbólica através da analogia. O Bêbado se refere aos artistas, músicos e poetas que se sentiam excluídos diante da censura imposta e que os mesmos levantaram suas vozes contra o regime militar, motivados pela “embriaguez” da liberdade.  Já a Equilibrista é uma imagem metaforizada da esperança, da volta da democracia em nosso país que precisa ser concretizada diante de uma realidade opressora (à época) - daí a necessidade da permanência e da existência da esperança simbolizada na equilibrista que não cai, diante das restrições estabelecidas: A ditadura militar.
Observa-se então, um paralelismo entre o bêbado e a equilibrista pois ambos precisam se manter em pé ante à realidade e às condições existentes no período citado.

ESTUDO PORMENORIZADO   


Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...


O viaduto em questão, expresso na canção, faz referência ao conjunto de construções realizadas durante o “milagre econômico e nos alude a uma tragédia que ocorreu no dia 20 de novembro de 1971. Foi o desabamento do viaduto Paulo Fotrin no Rio de Janeiro, onde uma parte de uma imenso elevado que se estendia por quilômetros, caiu sobre os pedestres fatalizando 27 pessoas, deixando dezenas de feridos e atingindo mais de vinte veículos. Este ocorrido não foi noticiado pela imprensa pois a mesma estava sob o regime da censura (O GLOBO, 2016).
“Caía a tarde” é também uma alusão ao horário em que as sessões de tortura se iniciavam no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de operações de Defesa Interna)
“O bêbado trajando luto” faz alusão à queda do viaduto e nos remete à tragicomédia do andarilho Carlitos, personagem de Charles Chaplin, o homenageado da canção.
Carlitos usava um bigode, um paletó bem apertado, chapéu – coco que agia como um cavalheiro, apesar de suas péssimas condições. No filme, Tempos Modernos (Chaplin, 1936), ele é um operário que se submete a uma rígida disciplina ordenada pelo processo fabril e por não se adaptar aos padrões impostos pelo modelo industrial é preso numa das manifestações de greve dos trabalhadores. Lembrar Carlitos é pois uma clara referência às greves proibidas durante o período militar em que os manifestantes eram presos também.
A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
  A lua  é um satélite que não possui luz e nem brilho próprio pois reflete apenas a luz do sol e “tal qual a dona do bordel ” que  tem um brilho falso, diante do seu prostíbulo. Assim sendo, “a lua” é uma construção poética para se referir aos políticos que apoiaram o regime militar (tal qual as prostitutas que recebem dinheiro) com o objetivo de obtenção de benefícios pessoais.
Os políticos defensores do regime de exceção eram chamados de luas-pretas devido ao fato de que em conversas reservadas, algumas pessoas afirmavam que se os militares afirmassem que a lua era preta, eles não só acreditariam como defenderiam tal afirmação como sendo uma verdade incontestável. Também é possível aludir os políticos às prostitutas, conforme assinalei no parágrafo anterior, já que elas se vendem em troca de ganhos pessoais. Muitas vezes, a Câmara dos Deputados e o Senado foram comparados a bordeis devido as constantes negociatas imorais que lá ocorriam.
As estrelas frias seriam os generais que governavam o Brasil como também possuíam vantagens astronômicas: nomear parentes e correligionários em cargos públicos e ou na direção das estatais. O “brilho de aluguel” era, portanto, as vantagens obtidas tanto pelos militares como pelos civis que o apoiavam.
       
E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco

        “As nuvens” é uma metáfora aos torturadores que assim como ela, eram inalcançáveis e intocáveis, diante das suas ações
        “Mata – borrão” era um equipamento de escritório usado por aqueles que utilizavam caneta- tinteiro para eliminar os borrões (os erros) na escrita. É uma alusão ao DOI-CODI (já explicado no início dessa análise), órgão de repressão e controle do regime militar contra aqueles que ameaçassem (“manchassem”) a ordem vigente. O “céu” do mata-borrão eram as prisões. As “manchas torturadas” seriam os opositores (os rebeldes contra o sistema) ao regime configurados como um “erro” de escrita, algo fora de ordem, indisciplinado e “torturadas” seriam uma referência às torturas sofridas pelos militantes de esquerda que viviam em constante “sufoco”, perseguido pelos militares.
Louco,
 O bêbado com seu chapéu coco
Fazia irreverência mil
Pra noite do Brasil
        Nesses versos, percebe-se a comparação entre Carlitos (que vivia diante da opressão da sociedade e do modelo industrial opressor) e o bêbado (que com seu chapéu coco fazia irreverência pra noite). Aqui, metaforicamente, noite simboliza os anos ditatoriais em oposição (antítese) ao amanhecer, identificado como o retorno das liberdades democráticas.
 Meu Brasil! ...
Que sonha com a volta do irmão do Henfil.
 Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete.
Chora!
 A nossa pátria,
Mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil.
         
Henfil é o apelido de Henrique Filho, um jornalista e cartunista que era irmão de Betinho, Herbert de Souza, sociólogo exilado do país devido ao seu intenso ativismo em defesa dos direitos humanos. É primordial salientar que a referência ao exílio de Betinho é também a todos os perseguidos e exilados do país bem como a esperança da anistia.
“Com tanta gente que partiu num rabo de foguete” é uma metáfora para destacar os exilados políticos que foram forçados a deixarem o país, ou que tiveram que sair.
“Chora a nossa pátria mãe gentil” (...) “no solo do Brasil” é uma ironia ao refrão do Hino Nacional do Brasil, pois segundo a canção, o Estado que tortura e persegue é aquele que justamente deveria promover a justiça, a segurança e a proteção dos brasileiros.
Maria é o nome da esposa do operário Manuel Fiel Filho, acusado de ser membro do Partido Comunista Brasileiro e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog. Ambos foram mortos nos porões do DOI-CODI(SP). O operário em Janeiro de 1976 e o jornalista em outubro de 1975, em situações semelhantes (VENTURA,1988).
O nome das duas esposas aparecem no plural porque nos remete a todas as esposas, mães e filhas, ou seja, às mulheres brasileiras que de alguma forma sofreram ou perderam um ente querido para o regime militar.

“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente”
A dor de todas as mulheres cujos familiares estavam imbuídos do ideal de luta pela democracia e que foram vitimados de alguma forma não será esquecida, pois conforme relatou a intérprete da canção, Elis Regina em entrevista concedida a Rádio Nacional do Rio de Janeiro em 1979, no lançamento do seu disco, essa mulher
      “a grande parcela da população anseia encontrar um Carlito  deste e sonha não ver mais nem Marias e nem Clarices chorando ” (REGINA,1979)

 A esperança...
Dança na corda bamba
De sombrinha
 E cada passo
Dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar (BOSCO, BLANC,1979)

Nesses últimos versos da canção temos a personificação da esperança através da figura da equilibrista que, diante das incertezas, ressalta a arduidade que esta enfrenta    para prosseguir em frente, apesar das adversidades impostas pelo regime.

  
Para não encerrar...
Após a aprovação da Lei da anistia, a cantora Simone gravou uma canção composta por Maurício Tapajós e Paulo César que aborta o tema. Veja a letra abaixo.

Tô Voltando - Simone

Pode ir armando o coreto
E preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando
Põe meia dúzia de Brahma pra gelar
Muda a roupa de cama
Eu tô voltando

Leva o chinelo pra sala de jantar
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar
Quero te abraçar, pode se perfumar
Porque eu tô voltando

Dá uma geral, faz um bom defumador
Enche a casa de flor
Que eu tô voltando
Pega uma praia, aproveita, tá calor
Vai pegando uma cor
Que eu tô voltando

Faz um cabelo bonito pra eu notar
Que eu só quero mesmo é despentear
Quero te agarrar
Pode se preparar porque eu tô voltando
Põe pra tocar na vitrola aquele som
Estreia uma camisola
Eu tô voltando

Dá folga pra empregada
Manda a criançada pra casa da avó
Que eu tô voltando
Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone não deixa nem tocar
Quero lá, lá, lá, ia, porque eu tô voltando!

 
Manoel Mosilânio Malaquias da Cruz (Pixote Cruz)
Historiador (URCA), Pedagogo (URCA), Graduado em Mídias da Educação (MEC) Especialista em Mídias da Educação(UFC), em Educação e Direitos Humanos (UFC); em Análise Transacional (Academia do Futuro) e em Metodologia do ensino Superior (UNICAP). Pesquisador sobre Música Brasileira e Tutor do Projeto Professor Aprendiz da SEDUC- FUNCAP na área de Ciências Humanas. Professor de Graduação e Pós- Graduação da Faculdade FACEN. Professor da Rede Privada e Pública Estadual de Brejo Santo-Ce, e do Curso Sapiento. (Salgueiro – Pe)
Especialista e Consultor Educacionais das Matrizes Curriculares e dos Parâmetros Curriculares Nacionais e da prova do ENEM
 Acesse o canal ENEM TOMARA 2017.

FONTES CONSULTADAS
ACERVO O GLOBO. Em novembro de 1971, elevado Paulo de Frontin desabou, matando 27 pessoas. 2016. Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/em-novembro-de-1971-elevado-paulo-de-frontin-desabou-matando-27-pessoas-10808571#ixzz40FPQKF8X.
BLANC, Aldir. Associação Brasileira de Imprensa. Entrevista concedida à José
Reinaldo Marques. 2007. Disponível em: http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/.
BOSCO, João. Clima de emoção na homenagem a Henfil. Entrevista concedida a Associação Brasileira de Imprensa. 2009. Disponível em: http://www.abi.org.br/clima-de-emocao-na-homenagem-a-henfil/.
REGINA, Elis. Lançamento do disco Essas Mulheres. Entrevista concedida a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. 1979. Disponível em: http://www.ebc.com.br/sites/default/files/null/4_-_o_bebado_e_a_equilibrista.mp3.
REIS, Daniel Arão; ROLLEMBERG, Denise. A ditadura, as artes e a cultura. Portal Memórias Reveladas. Governo Federal. Disponível em: http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/campanha/censura-nas-manifestacoes-artisticas/ .
SILVA, Fernando Lopes. O poético e o factual na letra da canção “o bêbado e a equilibrista”. Disponível em : http://alpha.unipam.edu.br/documents/18125/1302275/O+po%C3%A9tico+e+o+factual+na+narrativa+da+can%C3%A7%C3%A3o.pdf
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.