Foto: Fernanda Barros |
Nesse emaranhado de números, uma pergunta: o caminho entre a denúncia e a proteção é efetivo? Não há uma resposta que dê conta de mensurar estatisticamente tal eficácia, mas as vozes convergem para gritar pela urgência do fim da violência desta natureza.
Um dos instrumentos da Lei Maria da Penha para manter a integridade física e psicológica da vítima é a medida protetiva. Após uma mudança na legislação neste ano, pode ser concedida apenas a partir do depoimento à autoridade policial. Entre os seis casos de feminicídios analisados pelo O POVO — a partir das denúncias feitas pelo Ministério Público, três vítimas já tinham solicitado medida e duas tinham feito Boletim de Ocorrência (BO) denunciando o agressor. Não há, no Estado, nenhuma estatística que dê conta de monitorar quantas mulheres vítimas de feminicídio já tinham medida protetiva concedida.
Nos 151 primeiros dias de 2023, a média foram de 60,5 medidas protetivas concedidas por dia. No ano passado inteiro, esse número foi de 40,3 (14.708, ao todo). Já em 2021, em número mais afetado pela pandemia, a cifra era de 31,2 (11.738 no total).
Talita Lopes Falcão, 34, não está nesta estatística, mas ela já havia denunciado o homem suspeito de tê-la matado. O óbito ocorreu no dia 3 de julho após ela ter 80% do corpo queimado pelo ex-companheiro, no Dia dos Namorados. Contra o agressor, a vítima possuía mais de uma medida protetiva de urgência que, de acordo com a decisão judicial que pediu a prisão preventiva dele, eram “provavelmente decorrentes de ameaças anteriores, mas que não foram suficientes para impedir o crime em comento, reforçando o nosso entendimento quanto à necessidade da segregação cautelar, a fim de impedir a reiteração delitiva", pontua o mandado.
Existem diferentes e inovadores mecanismos que têm o papel de fazer as medidas protetivas terem mais assertividade e confiança. Patrulhas policiais específicas para receber denúncias de descumprimento, monitoramento por tornozeleira eletrônica, acionamento de serviços psicossociais disponíveis para ajudar mulheres a entenderem a importância da medida e acreditar que significa mais proteção.
Integrante do Fórum Cearense de Mulheres, Maria Ozaneide de Paulo destaca que a medida protetiva é um importante “termômetro” sobre os casos de feminicídio. ”Tentamos acompanhar sempre os casos com medida. Quando foi concedida, se quando o crime aconteceu a medida estava válida…”, explica. O Fórum faz cruzamentos de dados informalmente, a partir da Rede de Mulheres existente no Estado.
E é também de forma não oficial, mas social, que os problemas inerentes ao cumprimento das medidas são expostos por Ozaneide. “O que escutamos nos relatos é que elas não acreditam na segurança da medida. Qual o monitoramento que o Estado dá a essas mulheres? Mulheres com medidas são monitoradas por várias viaturas, mas muitas vezes não dá nem tempo. Quando o agressor chega já é para matar”, pondera.
Outras — e diferentes — realidades são consideradas. “As mulheres falam da dificuldade que elas vão ter de se comunicar com o pai dos filhos (o que impacta em diversas questões, inclusive financeiramente), que têm dificuldade de ter alguém para intermediar as visitas, e existe também a pressão familiar. Elas chegam em situações complicadíssimas, têm dificuldade de entender, mas explicamos e reforçamos”, expõe a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem), Jeritza Gurgel.
Conforme a defensora, as medidas protetivas mais comuns são as de afastamento do lar e proibição de se aproximar, e existem em duas categorias: as que “obrigam o agressor” e as que são direcionadas à “ofendida”. O dispositivo considera outras questões que envolvem o distanciamento e proteção, como abrigamento, proteção patrimonial, segurança e bem estar dos dependentes.
“Sempre pedimos a guarda unilateral dos filhos para a mulher, regulamos o direito das visitas para o genitor. A questão patrimonial, o juiz, naquele momento da violência, para preservar a integridade da mulher, o afasta da residência. Num segundo momento, a depender da resolução, ela poderá sair da casa. Mas a lei garante que, naquele momento, a vítima seja resguardada”, detalha Jeritza.
A secretária geral da Comissão da Mulher Advogada, da Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Ceará (OAB-CE), Olga Rodrigues Loiola, considera que atualmente a rede de proteção está mais organizada, mas ainda há desafios, principalmente quando se considera o interior do Estado. O artigo acrescentado à Lei Maria da Penha em abril deste ano facilita que as medidas protetivas sejam concedidas em locais e situações onde não haja disponibilidade de juiz. “Hoje, qualquer policial que esteja colhendo o depoimento da vítima e achar que ela está em perigo, pode fazer a intimação ao agressor”, explica.
Olga detalha que as medidas não são apenas quando há risco de violência física, apesar de ser a mais recorrente. “Digamos que o agressor esteja com cartões de crédito da mulher ou todo o aparato de dinheiro da unidade familiar. Nesses casos, ele pode ter como medida protetiva restituir esses bens à vítima”, explica.
Ceará ainda não cadastra mortes de mulheres como feminicídio
Até maio de 2023, 18% dos homicídios de mulheres foram definidos como feminicídios no Ceará. Em 2022, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, essa marca era de 9,1%. Uma lacuna que impede o entendimento real do cenário da violência contra a mulher no Estado e expõe o grave problema da subnotificação.
Em março deste ano, após elaboração de um dossiê que questiona a tipificação do crime, por parte do Fórum de Mulheres do Ceará, houve a promessa da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS) de que crimes violentos contra mulheres seriam cadastrados inicialmente como feminicídio para só depois, caso não houvesse confirmação da tipificação, o registro fosse mudado para homicídio. A lógica, porém, permanece a mesma.
De acordo com a SSPDS, a Polícia Civil trabalha na orientação interna aos servidores sobre a mudança, sem especificar nenhuma data. A pasta destaca que, "a partir das ações de prevenção realizadas pelas forças de segurança do Ceará, bem como ampla discussão sobre o tema nos meios de comunicação e demais espaços de debate", foram registrados, em 2023, 10.781 Boletins de Ocorrência com base na Lei Maria da Penha.
A presidente da Comissão de Direito da Mulher da OAB-CE, Olga Rodrigues Loiola, que também é mestranda em Avaliação em Políticas Públicas, destaca a importância da avaliação de dados, quantitativos e qualitativos. "Sabendo que a violência tem raízes históricas, precisamos de dados muito mais aprofundados. Importantes para compreender onde a política está dando certo e onde não está. A Lei não deveria depender de Governo, mas ser tratada de forma científica através dos dados", pondera.
A juíza Rosa Mendonça, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Fortaleza, afirma que ainda não há uma interoperacionalidade entre órgãos. "Quando se tipifica como feminicídio, você lança a lente sobre aquele crime. É preciso catalogar para saber se poderia ter sido evitado, onde a Justiça errou, a Polícia, a questão das políticas públicas, a própria apuração do crime", destaca.
De acordo com a defensora pública Jeritza Gurgel, do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica (Nudem) afirma que a Defensoria traça o perfil das vítimas a partir dos casos que chegam, com dados mensais. "Perguntamos à vítima se as crianças presenciavam a violência dentro de casa e em pelo menos 70% dos casos elas dizem que sim. Perguntamos quanto tempo demorou para buscar ajuda, se sofreu violência na infância…", detalha.
Uma das ações específicas que são resultado desse detalhamento das informações da vítima, de acordo com a defensora, é um mapeamento sobre os bairros onde mais acontecem os casos de violência doméstica. "Fazemos esse apanhado e desenvolvemos ações de educação e direito nos equipamentos daqueles bairros", destaca.
Sobre as estatísticas gerais do Estado, Jeritza afirma ainda que é preciso mais investimento, principalmente na Perícia Forense, para amenizar questões como a de subnotificação. "Falta equipamentos de polícia investigativa mesmo, imagens de câmeras, materiais para descobrir o crime. A mulher morre e muitas vezes o agressor muda a cena do crime, por exemplo", explicou.
Infográfico
Balanço das medidas protetivas
Denúncias por feminicídio no Ceará
2021 - 85
2022 - 107
2023 - 63 (até maio)
Medidas protetivas solicitadas pelo Ministério Público em Fortaleza
2021 - 5.149
2022 - 5.531
2023 - 3.027 (até maio)
Fonte: MPCE
Casos de feminicídio julgados pelo Tribunal de Justiça do Ceará
2021 - 43
2022 - 94
2023 - 44 (até maio)
Fonte: TJCE
Medidas protetivas concedidas no Ceará
2021 - 11.738
2022 - 14.708
2023 - 9.182 (até maio)
Fonte: TJCE
Mulheres mortas no Ceará
2023 (até maio)
Feminicídio - 15
Homicídio doloso - 80
2022
Feminicídio - 84
Homicídio doloso - 236
2021
Feminicídios - 31
Homicídio - 313
Fontes: Ministério Público do Ceará e Tribunal de Justiça do Ceará
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Desnível entre número de homicídios de mulheres e registros de feminicídios
Total de homicídios dolosos de mulheres no Ceará
2021 - 339 (terceira maior marca do Brasil)
2022 - 424 (sexta maior marca do Brasil)
Taxa de homicídios de mulheres por 100 mil habitantes
2021 - 7,5 (terceira maior)
2022 - 5,8 (quinta maior)
Total de feminicídios
2021 - 31 (16º maior do Brasil)
2022 - 28 (16º maior do Brasil)
Taxa de feminicídio por 100 mil habitantes
2021 - 0,7 (25º maior do Brasil)
2022 - 0,6 (26º maior do Brasil)
Fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública (com dados da SSPDS e TJCE)
*Fonte: O Povo+